segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O viés da decisão clínica por coerência


Em maio de 2022 publiquei nesse blog sobre o impacto negativo da falácia narrativa no campo da nutrição. Aquilo que considero o maior problema nesse campo advém de uma predisposição biológica compartilhada pelo ser humano, afinal, como já descrito por Kahneman e demais psicólogos cognitivos "somos inclinados a narrar fatos coerentes ao invés da compreensão de uma realidade aleatória e complexa". Não é de se estranhar que algumas pessoas joguem na mega sena, tenham maior medo em viajar de avião do que de carro ou escolham uma intervenção estética lipolítica para emagrecer. Narrativas distorcem probabilidades, mas criam um nova realidade de eventos em um universo mais organizado. Utópico!

Consistência vs Acaso

Existem situações onde o erro da "decisão clínica por coerência" pode ser mais ou menos problemático. Campos que variam menos (mais reprodutíveis) são menos sujeitos ao viés da decisão por coerência. Diferentemente, campos que variam muito (elevada probabilidade do acaso) possuem maior risco de decisões equivocadas sustentadas por histórias que possam fazer algum sentido lógico. Portanto, é crucial que possamos diferenciar situações do tipo:

- Devo suplementar ferro para um paciente anêmico com deficiência? ou 

- Devo comprar ações de uma empresa com projeção de crescimento para os próximos cinco anos? 

Observe que não é necessário ser especialista para saber que a primeira decisão tende a ser mais assertiva do que a segunda, apesar que ambas as situações possuam explicações positivas que nos convençam favoravelmente a seu favor. É consistente o benefício da suplementação de ferro em uma pessoa que tem deficiência do nutriente, diferentemente da predição futura de crescimento de uma empresa em um universo econômico volátil e incerto.

Não estou defendendo o ceticismo extremo (pirronismo), mas que possamos compreender que narrativas causam mais estrago quando a situação diante de nós é mais susceptível a elevada possibilidade do acaso. É necessário treinamento mental intenso para se contrapor a uma história bem contada, logicamente coerente e simplificada.

Nossa mente busca por conforto.

Que estudante de nutricão já não quis desistir da leitura do capítulo de um livro de bioquímica?

Seja na nutrição, estatística, engenharia ou até planejando nossa vida financeira, nossa mente busca por conforto cognitivo. Geralmente esse conforto a que me refiro está associado a decisões rápidas e menos complexas. Enquanto as decisões lentas, complexas e, possivelmente, mais assertivas são menos prevalentes já que demandam maior tempo e energia para processamento. Mesmo assim, por que somos inclinados a tomar decisões rápidas intuitivas? Vejamos a situação abaixo:

Imagine que você está em uma rua movimentada e observa um grande número de pessoas correndo. Intuitivamente, pensará em um assalto ou situação de perigo extremo. Dificilmente irá ficar muito tempo observando para definir probabilidades de possíveis eventos naquele momento de intensa "luta e fuga". Por mais que exista a possibilidade de não ser nada perigoso, a vantagem em correr é maior do que não correr. Afinal, sua vida pode estar em perigo!

Situações do exemplo acima eram comuns em tempos primórdios da caça-coleta. Mas hoje, o desenvolvimento tecnológico-científico nos colocou diante de situações em que as decisões requerem mais do que nossa mente rápida intuitiva. Observe que agora um nutricionista precisa saber o risco basal de seu paciente após uma boa avaliação nutricional, definir probabilidades de benefício ou malefício após associação entre o efeito relativo de uma intervenção e o benefício absoluto individual do seu paciente. Definitivamente, precisamos treinar nossa mente aos moldes da modernidade. Devemos aplicar o ceticismo para a maioria das situações que envolvam decisões individuais ou coletivas.

Essa narrativa platônica para explicar intervenções duvidosas é um exemplo de nossa mente em busca de conforto, um erro cognitivo que precisamos contornar a partir de um treinamento mental. Nada melhor do que exemplos para conseguir diferenciar situações em que um nutricionista pratica esse tipo de viés:

Situação 1: Paciente pergunta ao nutricionista se deve utilizar ômega 3 para prevenir doença cardiovascular.

Situação muito comum na prática clínica, muitos estudos já foram publicados sobre o assunto, inclusive um grande ensaio clínico multicêntrico de boa qualidade metodológica.

O nutricionista, tendo um conhecimento prévio sobre ômega 3, entende que esse ácido graxo essencial poliinsaturado possui ação antiiflamatória via modulação de eicosanóides, reduz triglicérides e está associado a menor risco cardiovascular a partir de estudos observacionais. Ou seja, existe uma narrativa a favor da intervenção que poderá influenciar uma decisão por coerência, mesmo que esse profissional não tenha lido sequer um ensaio clínico de boa qualidade demonstrando benefício em desfecho clínico (combinação de infarto, AVC, morte cardiovascular). Não estou dizendo que não se deva prescrever ômega 3, mas sim, que a intervenção deve ser adotada a partir da existência de ensaios de boa qualidade para que possamos inferir uma predição de benefício clínico futuro e não em mecanismos narrados de forma platonificada.

Digamos que o conceito foi provado, ou seja, temos ensaio clínico de boa qualidade demonstrando benefício do ômega 3 (4g de EPA) na redução do risco cardiovascular em indivíduos de alto risco com hipertrigliceridemia. O benefício absoluto esperado para um paciente adulto de baixo risco tende a ser irrisório, não justificando a suplementação além do consumo dietético diário. (Falaremos de benefício clínico absoluto e efeito relativo em postagem futura).

Situação 2: Nutricionista se depara com a decisão de adotar dieta cetogênica em um corredor 42 km.

A dieta cetogênica é caracterizada por um aumento na quantidade de gordura e baixo consumo de carboidrato dietético (<50g por dia). Ao estudar sobre a relação entre esse padrão alimentar e o desempenho esportivo, o nutricionista infere que existe uma grande chance da dieta promover benefício ao seu paciente, tendo em vista que os esportes baseados em endurance são caracterizados por elevada oxidação de gordura. Logo, ofertar mais ácidos graxos dietéticos fornecerá mais substrato energético (combustível) durante a prova, além dos corpos cetônicos que serão utilizados pelo cérebro. É possível que o profissional entenda que já possui as evidências e mecanismos de que necessita para realizar a intervenção individualizada assertiva em seu cliente.

Essa é uma situação clara de viés por coerência narrativa. Por mais que a oxidação de gordura no músculo seja elevada no endurance, sabemos que esse substrato não é limitante para desempenho. A falta de ensaios clínicos positivos em favor da dieta cetogênica, juntamente com a desvantagem no desempenho em treinamentos com maior intensidade (VO2 Máx >65%) inviabiliza a decisão pela sua adoção prática.

Diante do exposto, precisamos aceitar que, antes de tudo, nossa mente é inexoravelmente platônica. Criamos inconscientemente um mundo ideal, coerente e certo. Síncrono com a tentativa de conhecê-lo mais detalhadamente pela ciência. É necessário treinamento mental para tomar decisões clínicas livres do viés por coerência.




sábado, 4 de novembro de 2023

Exercício e emagrecimento: Evidência e prova do conceito.

 



Continua sendo frequente a quantidade de pessoas que buscam uma resposta quantitativa para o impacto individual da dieta ou exercício físico na perda de peso. Muitas vezes por um motivo de dúvida (- dieta ou exercício? Devo fazer ambos?) ou tentativa de compensação (- Posso comer de tudo, pois faço exercício físico). Isso faz parte da vida das pessoas, considerando uma sociedade em crescente prevalência de sobrepeso e obesidade. Como já demonstrado em diversos inquéritos transversais norte-americanos.

Esse texto poderia ser mais um daqueles provenientes de um autor tendencioso (viés da naturalidade), considerando o fato que sou entusiasta da prática semanal de exercício físico e esporte. Portanto, prometo praticar do meu treinamento mental para controle de vieses que possam influenciar na análise da evidência descrita na imagem dessa postagem. Isso porque hoje falaremos sobre o ensaio clínico randomizado: Weight Loss, Exercise, or Both and Physical Function in Obese Older Adults. Desenhado para responder essa questão de pesquisa.

A priori, o ensaio foi realizado em idosos com obesidade (IMC > 30 kg/m²), metodologicamente adequado em cálculo amostral, disponibilização de protocolo prévio e adesão as intervenções com baixa evidência do viés de performance (um grande problema em estudos com intervenções no estilo de vida). Os indivíduos foram randomizados em quatro grupos: Grupo controle; Grupo que realizou apenas dieta com déficit calórico; Grupo apenas exercício; Grupo que realizou dieta com déficit calórico + exercício. Sendo acompanhados durante um período de 1 ano.

Considerando a característica das intervenções, a dieta foi baseada na oferta de uma alimentação balanceada em vegetais, moderada em proeínas (em torno de 1 g/kg de peso atual/dia) e com déficit de 500 - 750 kcal. Já as características da intervenção do treinamento físico foram 90 minutos com combinação de exercício aeróbico, resistido e destinados a melhora de flexibilidade realizados três sessões na semana. Se exercitaram inicialmente a 65% da frequência cardíaca máxima, atingindo um aumento gradual até 70 - 85%. Treinamento resistido foi realizado inicialmente a 65% de uma repetição máxima, aumentando gradualmente até atingir 80%.

O presente estudo foi negativo para perda de peso relevante do grupo exercício (perda de peso de 1,8; DP: 2,7 kg - % perda de peso: 1%) em comparação com dieta (perda de peso de 9,7; DP: 5,4 kg - % perda de peso: 10%) ou dieta + exercício (perda de peso de 8,6; DP: 3,8 kg - % perda de peso: 9%). Adicionalmente, os dados foram semelhantes em relação a perda de gordura corporal: Grupo dieta (perda de massa gorda de 7,1; DP: 3,9 kg - % perda: 17%), grupo dieta + exercício (perda de massa gorda de 6,3; DP: 3,8 kg - % perda: 16%) e grupo exercício (perda de massa gorda de 1,8; DP: 1,9 kg - % perda: 5%).


Finalmente, o ensaio demonstrou que praticar exercício físico promoveu melhora da funcionalidade e qualidade de vida dos idosos avaliados, mas quando usado sem acompanhamento dietético, não apresentou melhora clínicamente relevante no emagrecimento ao final da intervenção.

A prova do conceito

É muito comum a utilização de apenas uma evidência para provar um conceito maior. Isso quando nem utilizamos evidência, como naqueles casos em que as pessoas se baseiam apenas em vias bioquímicas ou pensamentos meramente lógicos para confirmar suas crenças prévias. Sendo assim, precisamos saber previamente se estamos diante de uma hipótese óbvia em relação ao desfecho avaliado. Antes mesmo de ler uma evidência.
O estudo apenas corrobora com a hipótese da termodinâmica no emagrecimento: "É necessário a promoção de um balanço energético negativo sustentado para eficácia nesse desfecho". Uma vez que o grupo que realizou exercício isoladamente não conseguiu estar em déficit, é improvável algum resultado relevante. Portanto, fazer exercício físico sem déficit calórico dificilmente estará associado com resultados clinicamente importantes no emagrecimento ao final de uma intervenção.
Isso é diferente de afirmar que praticar exercício físico não contribui para emagrecimento no nível individual. O conceito já foi provado (termodinâmica), basta agora saber qual tipo de exercício individualmente poderia ser prescrito pelo profissional de educação física.

Próxima pergunta: Sendo o balanço energético negativo plausivelmente extremo para eficácia no emagrecimento, o exercício físico contribui para sua promoção?

Considerando que existe um contínuum de diferentes resultados, a resposta deve ser: Depende!
A relevância clínica (maior dispêndio calórico) é variável de acordo com a característica do treinamento e do indivíduo que o realiza (estágio de vida e aptidão). Exemplificando, é mais provável que um idoso, por questões fisiológicas, tenha maior dificuldade em estabelecer um grande dispêndio energético semanal sustentado do que um adulto jovem. Portanto, essa decisão deve ocorrer pelo profissional da educação física em compartilhamento com o indivíduo avaliado. De preferência, utilizando pensamento econômico (relação custo x benefício).

A abordagem da hipótese com relação ao metabolismo e melhora da flexibilidade metabólica (sensibilidade a insulina e função mitocondrial) não podem ser tratadas como hipóteses no mesmo nível de plausibilidade que a termodinâmica mencionada anteriormente, uma vez que poderemos ter melhora no uso dos substratos energéticos mesmo sem déficit calórico (por exemplo, dieta cetogênica está associada com maior oxidação de gordura, mas sem diferença no emagrecimento quando se ajusta para calorias). Portanto, é necessário ensaio clínico de eficácia para auxílio na prova do conceito.

Não resta dúvida que exercício físico melhora a qualidade de vida, funcionalidade e diminui o risco de transtornos psicológicos/comportamentais. Caso alguém te pergunte sobre a eficácia dessa intervenção no emagrecimento, recomendaria uma resposta objetiva: "Procure o profissional de educação física e um nutricionista para que ambos possam intervir e promover um balanço energético negativo sustentado, juntamente com os outros benefícios comprovadamente conhecidos".

domingo, 21 de maio de 2023

A OMS e a confusão dos adoçantes



No dia 15 de maio de 2023 nos deparamos com a recente notícia: A Organização Mundial da saúde (OMS) publicou na íntegra sua nova diretriz de atualização sobre o uso de adoçantes não-nutritivos (acesulfame-K, aspartame, sucralose, sacarina, neotame, stévia...) e sua eficácia na perda de peso e/ou risco associado a saúde. Assim como toda e qualquer notícia tratante de um tema capaz de impactar diretamente na vida das pessoas, a diretriz da OMS foi rapidamente divulgada nos principais veículos de informação, causando um certo alvoroço coletivo em diversos países. "adoçante faz mal para saúde?", "se não funciona para perda de peso, por que é vendido?", "utilizo adoçante, estou correndo risco?".

Qual a prevalência e justificativa para uso de adoçantes na população?

De acordo com dados dos EUA (NHANES e departamento de agricultura dos EUA), houve um aumento da prevalência do consumo de adoçantes em bebidas a partir de 1989 (10,1%, antes 3%). Além disso, o consumo por adultos é maior do que crianças e adolescentes. Outro dado importante está relacionado a comparação da prevalência do consumo de bebidas e alimentos contendo adoçantes não-nutritivos comparado a prevalência do consumo de açúcar de adição. Ambos apresentaram padrão de aumento semelhante ao longo dos anos. Ou seja, a população não parece substituir completamente o uso de açúcar calórico de adição por adoçantes não-nutritivos.

A principal justificativa é a questão calórica e o diabetes. As pessoas entendem que consumir os adoçantes seria mais vantajoso pelo motivo de apresentarem baixa ou nenhuma caloria.

Como de costume, busquei evidências de possíveis conflitos de interesse que pudessem me conduzir a uma conclusão inadequada contra os adoçantes não-nutritivos em decorrência de um possível viés de "superestimação do natural", infelizmente, muito prevalente entre os profissionais da nutrição. De fato, devemos buscar uma alimentação mais íntegra e natural, mas generalizar um maior risco associado ao consumo de produtos ditos "artificiais" é um erro cognitivo que possui capacidade de interferir em nossa capacidade de analisar evidências. Portanto, um erro baseado em um preconceito desnecessário. Em ciência, estamos interessados no conceito.

O que fala a diretriz da OMS

A publicação da OMS foi baseada em duas revisões sistemáticas de testes clínicos randomizados e estudos observacionais sobre a eficácia e riscos associados ao consumo de adoçantes não-nutritivos em adultos, crianças e mulheres grávidas, já considerando as doses defendidas como seguras pelas principais agencias reguladoras (FDA) após análises prévias de estudos toxicológicos. O propósito da diretriz foi responder a duas questões de pesquisas principais: 1- Qual é o efeito nos resultados de saúde em adultos, crianças e mulheres grávidas provenientes da maior ingestão de adoçantes não-nutritivos em comparação com menor ingestão? 2- Qual é o efeito nos resultados de saúde em adultos, crianças e mulheres grávidas provenientes da substituição de açúcares livres com adoçantes não-nutritivos?

Essa não é uma questão de pesquisa que deve ser respondida por meio de qualquer estudo clínico, principalmente devido aos principais problemas já documentados nos estudos nutricionais, sejam os fatores de confusão ou a heterogeneidade nos seus desenhos (difícil reprodutibilidade). Esse foi o primeiro e mais grave erro da OMS ao publicar a presente diretriz. Adicionalmente, não poderia deixar de citar a falta de comprometimento com a análise da principal hipótese que norteia o uso de adoçantes no desfecho clínico de interesse (emagrecimento/controle de peso corporal). Substituir açúcares calóricos de forma energeticamente relevante a ponto de contribuir para um déficit de calorias em pessoas que objetivam um balanço energético negativo demonstra um nível de plausibilidade obviamente importante e convincente que deve ser levado em consideração em qualquer análise racional no âmbito clínico individual. Neste caso, não estamos falando de hipóteses que objetivam um déficit calórico indireto por meio de algum composto que atue na diminuição da ingestão alimentar ou aumento das necessidades de energia diária, mas sim, estamos substituindo diretamente um macronutriente calórico com o objetivo de um balanço energético negativo (hipótese óbvia). Um exemplo prático seria um indivíduo que previamente consumia uma grande quantidade de refrigerante e bebidas ricas em xarope de frutose e, após uma mudança inicial no seu estilo de vida, diminuiu o consumo para 1 lata de refrigerente contendo adoçante não-nutritivo (- 150 a 200 kcal).

Eficácia, causalidade reversa e a "evidênciomania" da OMS.

A discussão de eficácia do óbvio é mais um exemplo de irracionalidade no campo da saúde. Principalmente quando são utilizados estudos de péssima qualidade para investigar algo que é plausivelmente extremo. Nesse caso, corremos o risco de negar o óbvio e assumir ineficácia no nível clínico individual. Paradoxal!

Para facilitar o entendimento, imagine um estudo que busca investigar a eficácia do uso de insulina no tratamento do diabetes mellitus tipo 1. Ao utilizar uma amostra pequena de pacientes adolescentes diabéticos (mais susceptíveis a baixa adesão no tratamento) em um estudo subdimensionado, poderíamos ter uma maior probabilidade de obter um resultado negativo no controle glicêmico (ineficáfia da insulina), mesmo o tratamento sendo óbvio. Estamos tratando de algo parecido aqui com o uso de adoçantes, déficit calórico e emagrecimento. O uso de ensaios clínicos mal desenhados e estudos observacionais em um campo repleto de fatores de confusão contribui para aumento do risco de conclusões inadequadas. É provável que a OMS tenha concluído apenas artefatos de confusão e em alguns momentos tentou explicar de maneira mais racional ou não os motivos dos resultados.

Dados descritivos prévios (ADA, 2012) de estudos populacionais demonstram um aumento concomitante do consumo de adoçantes não-nutritivos e açúcar. Adicionalmente, pessoas que apresentam uma alimentação de vida livre (sem acompanhamento) tendem a compensar uma maior quantidade do déficit calórico obtido com o uso de adoçantes. Contribuindo para um déficit calórico menor ou praticamente nulo.


Os riscos associados ao consumo de adoçantes não-nutritivos e as doenças crônicas como diabetes mellitus tipo 2, obesidade, doenças cardiovasculares e câncer de bexiga foram investigados por meio de estudos observacionais. Como já evidenciado acima, estudos toxicológicos prévios já foram realizados com doses maiores dos adoçantes individalmente, aliado ao fato da maioria desses compostos não serem absorvidos e metabolizados no organismo. Sendo assim, a quantidade dos adoçantes não-nutritivos espacificadas pela OMS compreende o consumo médio populacional. Estudos observacionais em um campo susceptível a confundimento não devem ser analisados com alta confiabilidade (pelo contrário), ainda mais quando os tamanhos de efeitos observados não são altos. HAS - HR 1.13 (1.09 to 1.17); DCV - HR 1.32 (1.17 to 1.50); Diabetes tipo 2 - HR 1.23 (1.14 to 1.32); Obesidade - HR 1.76 (1.25 to 2.49). Felizmente, a própria OMS sinaliza a suscetibilidade de se obter conclusões inadequadas devido a essa causalidade reversa. Mesmo assim, saberíamos que muitos veículos de informação em massa poderiam interpretar os resultados e suas conclusões de forma inadequada por mero erro biológico de confirmação e necessidade de vender notícias.

Sendo assim, deveríamos minimizar o uso da evidênciomania ou a capacidade de analisar somente resultados de estudos antes de uma investigação detalhada da questão de pesquisa e qualidade das evidências disponíveis. "Recomendações condicionais" baseadas em estudos de baixa qualidade para explicar uma questão de pesquisa complexa não são recomendações.

Recomendações são recomendações. Devem seguir o crivo das evidências capazes de influenciar na nossa tomada de decisão.




domingo, 1 de maio de 2022

O problema da falácia narrativa na nutrição



Se eu pudesse definir em uma só frase qual é o maior erro de alguns profissionais atuantes na nutrição, seria: "A prática inconsciente da falácia narrativa". São dois os fatores que levam a essa prática, sendo de grande valia a reflexão sobre eles. Além disso, não se sintam afetados negativamente caso já tenham praticado falácias narrativas, eu mesmo já utilizei deste artifício principalmente na época da faculdade.

1. Heurística por simplificação: Apesar de ainda não ter abordado aqui sobre os conceitos de heurísticas e erros cognitivos, devemos compreender inicialmente que nosso biológico tende a simplificar a maioria das questões do universo em nossa volta, independentemente do seu nível de complexidade. Talvez em decorrência da facilidade proporcionada para armazenar tais informações (memória), talvez porque nossa mente depende de um mundo mais "organizado" ou "padronizado" do que ele realmente é, facilitando assim nossa compreensão e vivência em um mundo de grande incerteza e aleatoriedade.

Trazendo para nossa área, é muito mais fácil compreender que ômega 3 previne doença cardiovascular em decorrência da justificativa no seu efeito antiinflamatório ou redutor de triglicérides do que enfrentar a metodologia de um ensaio clínico randomizado avaliando desfechos clínicos (por sinal já existe ensaio clínico positivo sobre essa questão de pesquisa). Quem nunca ouviu falar do famoso suplemento emagrecedor L-Carnitina ou outro composto voltado para o mesmo desfecho, mesmo não afetando o balanço energético e desafiando as leis da termodinâmica (1° lei) ainda são difundidos e vendidos com base em uma heurística simplificada.

Sendo assim, simplificar pode nos levar a erro de julgamento, mesmo que seja uma espécie de "inclinação" biológicamente inerente do ser humano para entender o universo a sua volta, podemos minimizar esse tipo de erro por meio da prática do ceticismo, conhecimento a priori da questão de pesquisa e como se comportam as variáveis investigadas.

2. Complexidade biológica: Esse segundo fator torna a nutrição o ambiente perfeito para a falácia narrativa. Nossa biologia é altamente complexa, tornando o estudo da interação entre corpo humano e nutrição um campo repleto de incertezas. Um campo desse tipo acentua a possibilidade da heurística simplificada, evocando a ocorrência de diversas situações vergonhosas vistas nas redes sociais por parte de alguns profissionais da saúde: "Consumir carboidrato engorda porque eleva insulina", "consumir fruta prejudica o fígado por causa da frutose", "fazer dieta cetogênica aumenta a performance no endurance".

Pior ainda é quando informações baseadas em falácia narrativa evoluem para um maior nível de persuasão entre os profissionais como, por exemplo, pós graduações e especializações muitas vezes repletas de nomes chamativos disfarçados por um bom marketing de divulgação: "Especialização em low carb", "nutrição holística", pasmem.

Ainda nos dias atuais, quando alguém me pergunta qual o maior problema de alguns profissionais atuantes na minha área, sempre bato na mesma tecla: "O maior problema é a falácia narrativa". Nunca digo primeiro que é a desonestidade (apesar de também ser um problema), justamente porque tanto seres honestos quanto desonestos estão sujeitos a prática de falácias. Esse é um problema que tem mais haver com racionalidade do que inteligência. Sendo assim, abordaremos a seguir esse tema antes de finalizarmos o presente texto.

Inteligência x racionalidade

Você poderia me citar diversos indivíduos ou profissionais da saúde que considera inteligente. Digamos, por exemplo, um nutricionista bioquímico pós-doc ou especialista em bioinformática, um médico bioestatístico pós-doc, entre outros. Nenhum desses indivíduos estão excluídos de praticarem falácias mesmo dentro de sua área de formação. Para um profissional da saúde, falácia narrativa torna-se um problema porque afeta a conduta, chega no nível clínico e torna-se relevante. Compreender como essa prática influencia nosso conhecimento científico do universo estudado requer maior dependência do uso da racionalidade. Em outras palavras, para atuar em nutrição, vale mais a pena para um profissional inteligente em sua área ou não, praticar racionalidade ou compreender uma questão de pesquisa como ela realmente é, considerando o nível de incerteza.

Inteligência consiste em uma "facilidade" ou aptidão para uma determinada complexidade. Diferentemente, racionalidade consiste na capacidade do indivíduo de insistir no verdadeiro entendimento do universo. É quando tomamos ciência de uma problema que buscamos resolver. Do ponto de vista cognitivo, tornar-se um ser mais racional requer dispêndio de energia e maior tempo para processar informações.

Se você ouvir dizer que alguém é inteligente na área da saúde porque compreende mecanismos, hipóteses e conceitos isolados, prefira optar por ser aquele que dentro do meio científico consiga distinguir o quanto provável é a veracidade de uma hipótese no universo a partir das características das evidências disponíveis sobre ela.


sexta-feira, 30 de julho de 2021

A limitação dos estudos com alimentos


 Por que os estudos com alimentos são precários?

Essa é uma pergunta que poucos profissionais que trabalham com alimentos e saúde gostariam de responder. Antes de tudo, tenham em mente que essa não consiste em uma publicação destinada a estudos com dietas e sim com objetivo de avaliar benefício em desfecho clínico associado a alimentos isolados.

O primeiro problema nos ensaios clínicos com alimentos consiste no entrave associado ao tamanho da amostra. Aumentar o tamanho da amostra irá garantir menos erros aleatórios, menor risco de resultados devido ao acaso e maior poder estatístico. Se isso é importante para os estudos de uma forma geral, no caso dos ensaios com alimentos torna-se ainda mais necessário, tendo em vista o histórico de baixo tamanho de efeito clínico já observado nesses tipos de estudos e já demonstrado pelo epidemiologista Ioannids (quanto menor o tamanho de efeito, maior deve ser o tamanho da amostra).

O segundo problema está associado a presença dos fatores de confusão. Para compreender esse entrave basta observar que um indivíduo não consome somente um alimento no seu dia-a-dia. Do ponto de vista causal, isso contribui para a visualização de uma rede de causalidades diferentes que sim, poderão funcionar como fatores de confusão capazes de interferir nos resultados dos estudos. Isso é um problema grave e extremamente difícil de controlar na epidemiologia nutricional.

Um estudo que busca avaliar o benefício da castanha do Pará na melhora do colesterol em pacientes com obesidade dificilmente garante que os indivíduos estudados não possam consumir peixe, azeite oliva, linhaça ou uma dieta com que contenha algum alimento fonte de fibras solúveis. Cada alimento deve ser visto como uma teia dentre uma rede de causalidade.

Por que os estudos com alimentos ainda estão sendo produzidos?

Me arrisco a dizer que o principal motivo ainda é o viés de publicação e a permuta da "qualidade" pela "quantidade" dos ensaios publicados (publica-se em demasia, mas com pouco rigor) 

Por fim, a maioria dos nutricionistas ainda precisam deixar de lado a visão superestimada do "estilo de vida acima de tudo" e adquirir um pensamento mais racional do benefício adquirido por condutas nutricionais que não sejam provenientes de crenças fora do escopo científico.

Todos os estudos com alimentos são ruins?

Podemos dizer que não, mas não me arrisco a dizer que são necessários. Estudos exploratórios e aqueles que buscam investigar algo proveniente de uma hipótese óbvia são estudos possíveis para avaliação de uma benefício (exemplo: Estudo com fontes alimentares biodisponíveis de ferro-heme no tratamento da anemia ferropriva ou outros que avaliem o benefício em deficiências nutricionais).

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Artigo científico e a boa evidência


Provavelmente você já ouviu alguém ensinando a pesquisar e discutir informações com base na busca de artigos científicos nas mais diversas bases de dados. Mas, se temos artigos "científicos" disponíveis, porque perdemos tanto tempo dialogando informações e formulando conhecimento?

Eu costumo dizer que os artigos científicos, simplesmente, são formas variavelmente delineadas com objetivo de fornecer informações necessárias para formulação do pensamento científico. Mas para que esse artigo disponível exprima valor científico torna-se necessário que tanto os autores quanto os leitores estejam preparados mentalmente para suspender seu juízo, buscar a indiferença e a paz interior. Que ambos se recolham em sí mesmos e deixem que a síntese e os resultados do estudo sejam provenientes da multiplicidade de resultados possíveis da natureza da pesquisa.

Sendo assim, nós encontraremos artigos científicos classificados como de baixa evidência, os geradores de hipóteses e, por fim, os realmente capazes de nos AUXILIAR na mudança de nossas condutas (boa evidência). Destaquei a palavra "auxiliar" justamente para deixar claro que a mudança de conduta não é exclusiva da análise científica, mas complementados pelas características do paciente e o empirismo clínico. Por isso, ressalto a necessidade da mente profissional ser moldada pelo ceticismo, pois somente assim poderemos entender o momento de aplicar ou não as boas evidências ao paciente, mesmo que elas sejam realmente boas, a decisão final deve ser humildemente decidida pelo clínico.

Sendo a boa evidência uma forma probabilisticamente elevada de contribuir para modificação de conduta, podemos citar como exemplo o estudo Diabetes Control and Complications Trial (DCCT) publicado com o intuito de testar a "hipótese da glicose" na época e verificar se realmente controlar intensivamente a glicemia de diabéticos tipo 1 resultava em menor risco de complicações micro e macrovasculares. Sem dúvidas, muitos critérios de causalidade foram identificados como relevantes nesse estudo (plausibilidade, força de associação, dose resposta), apoiando os surpreendentes resultados para a época que foi realizado. Mas, analisando sob a perspectiva atual, o DCCT não é somente uma "boa evidência", mas também uma evidência que dificilmente não seria boa. Isso porque atualmente sabemos o elevado nível de plausibilidade que a terapia com insulina possui para o tratamento do DM tipo 1. Se você intensifica esse tratamento (como fez o DCCT) a probabilidade pré teste positiva se eleva.

Neste caso específico, avaliar plausibilidade faz muito sentido para entendermos a relação causal. No entanto, existirão milhares de outras situações em que a plausibilidade não poderá ser utilizada com tanta exclusividade para demonstrar relação causal (exemplo: Será que ofertar de 3 aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA) gera hipertrofia muscular?). Embora ineficaz , BCCA e hipertrofia nos oferece plausibilidade, mas em uma proporção fraca. Por isso, sozinho, não garante benefício clínico.

No próximo texto falaremos sobre inferência causal, o que é uma plausibilidade extrema e não extrema, consistência, força de associação, dose resposta, reversibilidade...