Em maio de 2022 publiquei nesse blog sobre o impacto negativo da falácia narrativa no campo da nutrição. Aquilo que considero o maior problema nesse campo advém de uma predisposição biológica compartilhada pelo ser humano, afinal, como já descrito por Kahneman e demais psicólogos cognitivos "somos inclinados a narrar fatos coerentes ao invés da compreensão de uma realidade aleatória e complexa". Não é de se estranhar que algumas pessoas joguem na mega sena, tenham maior medo em viajar de avião do que de carro ou escolham uma intervenção estética lipolítica para emagrecer. Narrativas distorcem probabilidades, mas criam um nova realidade de eventos em um universo mais organizado. Utópico!
Consistência vs Acaso
Existem situações onde o erro da "decisão clínica por coerência" pode ser mais ou menos problemático. Campos que variam menos (mais reprodutíveis) são menos sujeitos ao viés da decisão por coerência. Diferentemente, campos que variam muito (elevada probabilidade do acaso) possuem maior risco de decisões equivocadas sustentadas por histórias que possam fazer algum sentido lógico. Portanto, é crucial que possamos diferenciar situações do tipo:
- Devo suplementar ferro para um paciente anêmico com deficiência? ou
- Devo comprar ações de uma empresa com projeção de crescimento para os próximos cinco anos?
Observe que não é necessário ser especialista para saber que a primeira decisão tende a ser mais assertiva do que a segunda, apesar que ambas as situações possuam explicações positivas que nos convençam favoravelmente a seu favor. É consistente o benefício da suplementação de ferro em uma pessoa que tem deficiência do nutriente, diferentemente da predição futura de crescimento de uma empresa em um universo econômico volátil e incerto.
Não estou defendendo o ceticismo extremo (pirronismo), mas que possamos compreender que narrativas causam mais estrago quando a situação diante de nós é mais susceptível a elevada possibilidade do acaso. É necessário treinamento mental intenso para se contrapor a uma história bem contada, logicamente coerente e simplificada.
Nossa mente busca por conforto.
Que estudante de nutricão já não quis desistir da leitura do capítulo de um livro de bioquímica?
Seja na nutrição, estatística, engenharia ou até planejando nossa vida financeira, nossa mente busca por conforto cognitivo. Geralmente esse conforto a que me refiro está associado a decisões rápidas e menos complexas. Enquanto as decisões lentas, complexas e, possivelmente, mais assertivas são menos prevalentes já que demandam maior tempo e energia para processamento. Mesmo assim, por que somos inclinados a tomar decisões rápidas intuitivas? Vejamos a situação abaixo:
Imagine que você está em uma rua movimentada e observa um grande número de pessoas correndo. Intuitivamente, pensará em um assalto ou situação de perigo extremo. Dificilmente irá ficar muito tempo observando para definir probabilidades de possíveis eventos naquele momento de intensa "luta e fuga". Por mais que exista a possibilidade de não ser nada perigoso, a vantagem em correr é maior do que não correr. Afinal, sua vida pode estar em perigo!
Situações do exemplo acima eram comuns em tempos primórdios da caça-coleta. Mas hoje, o desenvolvimento tecnológico-científico nos colocou diante de situações em que as decisões requerem mais do que nossa mente rápida intuitiva. Observe que agora um nutricionista precisa saber o risco basal de seu paciente após uma boa avaliação nutricional, definir probabilidades de benefício ou malefício após associação entre o efeito relativo de uma intervenção e o benefício absoluto individual do seu paciente. Definitivamente, precisamos treinar nossa mente aos moldes da modernidade. Devemos aplicar o ceticismo para a maioria das situações que envolvam decisões individuais ou coletivas.
Essa narrativa platônica para explicar intervenções duvidosas é um exemplo de nossa mente em busca de conforto, um erro cognitivo que precisamos contornar a partir de um treinamento mental. Nada melhor do que exemplos para conseguir diferenciar situações em que um nutricionista pratica esse tipo de viés:
Situação 1: Paciente pergunta ao nutricionista se deve utilizar ômega 3 para prevenir doença cardiovascular.
Situação muito comum na prática clínica, muitos estudos já foram publicados sobre o assunto, inclusive um grande ensaio clínico multicêntrico de boa qualidade metodológica.
O nutricionista, tendo um conhecimento prévio sobre ômega 3, entende que esse ácido graxo essencial poliinsaturado possui ação antiiflamatória via modulação de eicosanóides, reduz triglicérides e está associado a menor risco cardiovascular a partir de estudos observacionais. Ou seja, existe uma narrativa a favor da intervenção que poderá influenciar uma decisão por coerência, mesmo que esse profissional não tenha lido sequer um ensaio clínico de boa qualidade demonstrando benefício em desfecho clínico (combinação de infarto, AVC, morte cardiovascular). Não estou dizendo que não se deva prescrever ômega 3, mas sim, que a intervenção deve ser adotada a partir da existência de ensaios de boa qualidade para que possamos inferir uma predição de benefício clínico futuro e não em mecanismos narrados de forma platonificada.
Digamos que o conceito foi provado, ou seja, temos ensaio clínico de boa qualidade demonstrando benefício do ômega 3 (4g de EPA) na redução do risco cardiovascular em indivíduos de alto risco com hipertrigliceridemia. O benefício absoluto esperado para um paciente adulto de baixo risco tende a ser irrisório, não justificando a suplementação além do consumo dietético diário. (Falaremos de benefício clínico absoluto e efeito relativo em postagem futura).
Situação 2: Nutricionista se depara com a decisão de adotar dieta cetogênica em um corredor 42 km.
A dieta cetogênica é caracterizada por um aumento na quantidade de gordura e baixo consumo de carboidrato dietético (<50g por dia). Ao estudar sobre a relação entre esse padrão alimentar e o desempenho esportivo, o nutricionista infere que existe uma grande chance da dieta promover benefício ao seu paciente, tendo em vista que os esportes baseados em endurance são caracterizados por elevada oxidação de gordura. Logo, ofertar mais ácidos graxos dietéticos fornecerá mais substrato energético (combustível) durante a prova, além dos corpos cetônicos que serão utilizados pelo cérebro. É possível que o profissional entenda que já possui as evidências e mecanismos de que necessita para realizar a intervenção individualizada assertiva em seu cliente.
Essa é uma situação clara de viés por coerência narrativa. Por mais que a oxidação de gordura no músculo seja elevada no endurance, sabemos que esse substrato não é limitante para desempenho. A falta de ensaios clínicos positivos em favor da dieta cetogênica, juntamente com a desvantagem no desempenho em treinamentos com maior intensidade (VO2 Máx >65%) inviabiliza a decisão pela sua adoção prática.
Diante do exposto, precisamos aceitar que, antes de tudo, nossa mente é inexoravelmente platônica. Criamos inconscientemente um mundo ideal, coerente e certo. Síncrono com a tentativa de conhecê-lo mais detalhadamente pela ciência. É necessário treinamento mental para tomar decisões clínicas livres do viés por coerência.